A sombra de Alzheimer
Até que ponto lapsos de memória se tornam normais com o envelhecimento?
Testes neuropsicológicos e imageamento cerebral revelam o tênue limite entre
distúrbios cognitivos leves e demência grave
Por Gaël Chételat e Catherine Lalevée
Seu Vitório está ficando esquecido. Aos 65 anos, vive procurando seus objetos pessoais, sem conseguir lembrar onde os colocou. Às vezes vai até a cozinha e se pergunta, confuso, o que pretendia fazer lá. A família está preocupada e quer que ele procure um médico. Será que é mesmo tão grave andar um pouco desligado? Guardar a carteira no lugar errado, esquecer um aniversário - isso pode acontecer com qualquer um, vez ou outra. Afinal, não é comum que pequenos "brancos" se tornem mais freqüentes com a idade? Seu Vitório nunca viu motivo para preocupação até o dia em que esqueceu de buscar o neto na escola. A partir daí também ficou cismado: até que ponto esse tipo de esquecimento é normal? Seriam os primeiros sinais da doença de Alzheimer? Seria necessário fazer exames?
A preocupação de seu Vitório tem fundamento. A doença de Alzheimer é extremamente rara em pessoas com menos de 60 anos, nas quais problemas de memória quase sempre são conseqüências do stress ou da depressão. A partir da sexta década de vida, porém, o risco de desenvolver a doença aumenta significativamente. Para ter uma idéia, entre 60 e 65 anos, uma em cada 20 pessoas é diagnosticada com o distúrbio; acima dos 85, essa relação é de um para quatro.
A demência de Alzheimer é uma doença neurodegenerativa que acomete neurônios de diversas regiões cerebrais. Por isso os indivíduos afetados não sofrem apenas de problemas de memória, mas também de outros distúrbios cognitivos que incluem a fala, a capacidade de concentração, de orientação espacial, de raciocínio e cálculo. Não há cura e as terapias disponíveis apenas retardam o desenvolvimento da doença por alguns poucos anos. A administração de drogas para aumentar os níveis do neurotransmissor acetilcolina no cérebro, por exemplo, auxilia a comunicação neuronal e tende a desacelerar sua degeneração. Esse tratamento é até três vezes mais eficaz no estágio inicial da doença do que mais tarde, quando os sintomas se desenvolveram por completo e a transmissão entre os neurônios já foi comprometida.
Diagnóstico precoce, portanto, é fundamental. Na verdade, a comprovação inequívoca de que alguém sofre de Alzheimer só é possível por meio da análise do tecido cerebral e só pode ser realizada, obviamente, depois da morte do paciente. Para diferenciar a doença de Alzheimer de outros tipos de demência e distúrbios neurológicos na prática clínica, a medicina dispõe de testes neuropsicológicos e procedimentos de imageamento que permitem inferir o estado de deterioração cerebral.
Quando seu Vitório chegou ao Instituto Nacional de Saúde e Pesquisas Médica de Caen, França, a primeira coisa que fizemos foi aplicar nele uma bateria completa de exames neuropsicológicos.
Antes de mais nada, um neuropsicólogo testou a capacidade de memorização de seu Vitório. Ele teve de memorizar algumas palavras e, mais tarde, repetir as de que se lembrava, espontaneamente ou por associação. A tarefa seguinte foi ligar números e letras escritos de forma desordenada numa folha de papel: um traço devia ligar o algarismo "1" à primeira letra do alfabeto, "A", depois o traço seguia até o algarismo "2" e de lá para a letra "B"; e assim por diante. Alternar letras e números exige certa flexibilidade mental, muitas vezes reduzida nos pacientes com Alzheimer, mas não nas pessoas que apresentam os sintomas comuns de envelhecimento.
Na terceira etapa, a capacidade de concentração de seu Vitório foi colocada à prova: ele teve de mostrar se era capaz de manter a atenção em determinado aspecto de uma situação, ignorando todo o resto. No cotidiano, isso ocorre, por exemplo, quando temos de prestar atenção em nosso interlocutor apesar das conversas paralelas. O neuropsicólogo mostra ao paciente uma folha na qual estão escritos os nomes de dezenas de cores. Porém, as cores em que as palavras estão escritas são diferentes das que designam. A palavra "vermelho", por exemplo, está escrita em azul. A pessoa submetida a esse teste tem de dizer, o mais rápido possível, as cores em que as palavras estão escritas. Não é uma tarefa fácil, pois é preciso reprimir a tendência natural de ler, esquecer os significados, e concentrar-se totalmente nas cores.
Depois o neuropsicólogo testou a percepção espacial de nosso paciente pedindo que ele reproduzisse um desenho. Por fim, seu Vitório teve de imitar gestos, escrever palavras ditadas e resolver problemas simples que exigiam adição e multiplicação para mostrar como andavam seu raciocínio e sua capacidade de calcular.
ZONA CINZENTA
Seu Vitório obteve bons resultados na maioria dos testes, apenas sua memória apresentou pequeno déficit. Ele não conseguiu repetir todas as palavras que deveria ter memorizado e esqueceu alguns detalhes ao reproduzir um desenho. Segundo os neuropsicólogos, tais dificuldades se enquadram entre os chamados distúrbios cognitivos leves, que incluem problemas de memória um pouco mais sérios que os considerados comuns à idade mas não afetam outras funções cognitivas. Trata-se de uma zona cinzenta, como dizem os médicos, entre as queixas normais da idade e a doença de Alzheimer.
Em outras palavras, isso significa que seu Vitório precisa passar por mais exames, ainda que seu estado não seja preocupante. A idéia é esclarecer se essas dificuldades cognitivas leves são ou não sinais precoces da demência de Alzheimer. Assim nosso paciente foi parar dentro do "tubo", isto é, do equipamento de ressonância magnética nuclear que mostra o estado da estrutura cerebral, podendo detectar também alguma lesão anterior, derrames ou tumores ainda não diagnosticados.
O objetivo principal da ressonância magnética nesse caso é afastar a possibilidade de outras doenças ou lesões cerebrais serem a causa do distúrbio de memória. Entretanto, há outros sinais de Alzheimer que podem ser identificados pela ressonância, já que a degeneração neuronal progressiva deixa marcas bem características: a chamada degeneração neurofibrilar. Ela aparece primeiro em certas regiões, principalmente no hipocampo estrutura essencial para a memória , assim como na área que o circunda: o giro paraipocampal. Depois, as lesões se espalham por todo o cérebro e levam à atrofia dos tecidos nervosos. Essas regiões atrofiadas são facilmente visualizadas com a ressonância magnética. Em alguns pacientes, a atrofia do hipocampo já aparece em estágio bem inicial, antes mesmo de a capacidade cognitiva começar a se deteriorar.
No caso de seu Vitório, as imagens não mostraram nenhuma anomalia típica de Alzheimer ou lesões que indicassem outras doenças. Observou-se, no entanto, uma degeneração difusa, comumente associada à idade avançada. O médico o aconselhou a repetir os exames a cada seis meses para ter certeza de que seu estado permanece estável. Além disso, incentivou o paciente a participar de um estudo no qual investigamos distúrbios de memória e alterações associadas a eles a longo prazo, tanto do ponto de vista neuropsicológico como do imageamento cerebral. Com isso pretendemos aumentar o conhecimento sobre a degeneração neuronal progressiva e buscar novos critérios diagnósticos.
Seu Vitório consentiu em submeter-se a alguns testes para, dessa vez, examinar seu desempenho em relação ao armazenamento e recuperação de informações. Aproveitamos também para examinar mais a fundo as pequenas alterações de seu cérebro. Para tanto, fizemos uso de um método estatístico aplicado às imagens de ressonância magnética que permite determinar com precisão o volume de regiões cerebrais específicas com isso podemos avaliar se e em que medida determinadas estruturas estão fora dos padrões aceitáveis para a idade dele.
Por meio da volumetria por ressonância magnética é possível ver sutilezas que não aparecem na simples observação das imagens. Assim descobrimos que os neurônios da região hipocampal desaparecem progressivamente também em pessoas que sofrem de distúrbios cognitivos leves. Além disso, o cérebro desses pacientes apresenta outras anomalias, por exemplo em partes do lobo temporal e do córtex cingular - áreas também afetadas em pessoas com demência. Portanto, a fronteira entre distúrbios moderados e a doença de Alzheimer parece ser bastante tênue. Ao que tudo indica, porém, nem todas as pessoas com distúrbios cognitivos leves evoluem obrigatoriamente para um quadro de demência.
Nosso estudo pretendia investigar mais a fundo as diferenças entre o cérebro de pessoas como seu Vitório e de quem sofre de Alzheimer, por isso a terceira etapa da pesquisa incluiu outro método de diagnóstico por imagem: a tomografia por emissão de pósitrons (PET), que torna visível a atividade metabólica dos tecidos.
Injetamos em seu Vitório uma pequena dose de glicose marcada por um isótopo radioativo. Como o cérebro usa o açúcar como fonte de energia, a substância se acumula preferencialmente nas áreas de atividade metabólica mais intensa. Como a glicose está marcada pelo isótopo, há uma clara distinção de áreas muito ou pouco ativas nas imagens da PET, que complementa os resultados da ressonância magnética. Hoje sabemos que o cérebro pode apresentar problemas de função mesmo na ausência de lesões na sua estrutura. Inversamente, é possível que uma região pouco degenerada cumpra suas tarefas perfeitamente porque os demais neurônios compensam o prejuízo - fenômeno conhecido por plasticidade neural.
Com a ajuda das imagens obtidas por PET descobrimos que, mesmo em pacientes com Alzheimer, áreas visivelmente atrofiadas nem sempre são responsáveis pelo déficit cognitivo. Em alguns casos, o hipocampo afetado apresenta atividade normal, ao passo que o metabolismo de outras regiões está extremamente reduzido, como no córtex cingular posterior e na região intermediária entre os lobos parietal e temporal. O mais importante, porém, é que podemos visualizar essa perda de atividade antes mesmo que sintomas agudos de Alzheimer venham à tona. Por outro lado, pacientes com distúrbios cognitivos leves, como seu Vitório, não apresentaram redução metabólica no lobo temporoparietal. Não há dúvida, portanto, que a PET é uma ferramenta importante no diagnóstico precoce da doença de Alzheimer, mais do que exames neuro-psicológicos. O problema é que se trata de um procedimento extremamente caro, muito mais usado em pesquisas do que na rotina médica. Esperamos que seus custos diminuam no futuro, como ocorre com a maioria das tecnologias, já que o ganho para os pacientes é muito grande, pois quanto antes a doença for diagnosticada, mais poderemos prolongar o período de vida saudável dos pacientes.
Seu Vitório e sua família estão mais tranqüilos. Os exames dele não apontaram nada além dos distúrbios cognitivos leves. É muito improvável, portanto, que ele perca suas lembranças de uma hora para outra. Deverá levar uma vida independente, pelo menos do ponto de vista mental, por muitos anos ainda.
Limites do esquecimento
É comum os idosos terem dificuldades de se lembrar de determinados eventos. Se esses esquecimentos se mantêm estáveis ou pioram lentamente, os médicos os consideram sintomas normais do envelhecimento. Nesses casos, métodos de imageamento revelam pequena redução do volume cerebral e certa limitação das atividades do lobo frontal.
Os distúrbios cognitivos leves se distinguem pela recorrência dos lapsos de memória. Além disso, os pacientes têm problemas para memorizar acontecimentos atuais. O cérebro deles sofre atrofia em certas regiões, especialmente no hipocampo e no lobo temporal. A atividade do córtex cingular posterior e da região intermediária entre os lobos temporal e parietal (lobo temporoparietal) também se reduz. A evolução desse tipo de distúrbio é variável e deve ser supervisionada por um médico em intervalos regulares de tempo.
Quando os problemas de memória e alterações anatômicas do cérebro aumentam rapidamente, é quase certo que o diagnóstico seja a doença de Alzheimer. Além de não se lembrarem dos acontecimentos passados, os pacientes têm dificuldades de memorizar novas informações. Os primeiros indícios geralmente revelam mais de uma função cognitiva afetada, como fala e concentração. Nos estágios mais avançados, todas elas costumam ficar comprometidas. Os exames de imagens mostram nítida diminuição do tamanho do hipocampo desses pacientes, bem como do córtex cingular posterior e do lobo temporoparietal. Na fase final da doença as lesões comprometem também todo o córtex frontal.
A notícia de Alzheimer
A notícia do Alzheimer abala qualquer família, e poucas estão preparadas para a responsabilidade e a sobrecarga que é cuidar de um portador da doença. A Associação Brasileira de Alzheimer (Abraz) oferece apoio e orientação sobre tratamento e aspectos cotidianos do acompanhamento do paciente. Formada por parentes de portadores e profissionais de saúde, a Abraz está presente em 16 estados. Tel.: 0800-55-1906. Site: www.abraz.org.br
Promessas diagnósticas
Além dos testes neuropsicológicos, da ressonância magnética e da tomografia por emissão de pósitrons, os cientistas contam com uma nova ferramenta para identificar as alterações anatômicas típicas da doença de Alzheimer: o imageamento por tensor de difusão (DTI, na sigla em inglês).
Trata-se de um tipo de ressonância magnética que permite a caracterização da estrutura de tecidos fibrosos (como as fibras nervosas) por meio de medidas locais da difusão de moléculas de água.
Nos tecidos saudáveis, elas correm ao longo dos axônios; na doença de Alzheimer a membrana axonal é danificada, atrapalhando a movimentação dessas moléculas. A DTI mede essa diferença e revela lesões muito precoces.
Outra inovação na área de diagnóstico por imagem foi anunciada em 2005 por pesquisadores japoneses do Instituto Riken de Pesquisas Cerebrais, em Saitama. Eles conseguiram tornar visíveis as placas de proteína amilóide no cérebro de ratos com Alzheimer, no qual foi injetada uma molécula capaz de ultrapassar a barreira hematoencefálica e se fixar nos depósitos de proteína. A substância injetada foi marcada com flúor-19, que aparece em destaque nas imagens de ressonância magnética e, logo, revela a localização precisa das placas amilóides. O procedimento ainda está em fase de testes em animais.
Alterações na bioquímica cerebral também podem ser usadas para fins diagnósticos. Harald Hampel, da Universidade Ludwig-Maximillian, em Munique, aposta na proteína tau modificada. Nos pacientes com Alzheimer ela apresenta fosfato em excesso, o que compromete sua função de suporte e faz com que os neurônios percam estabilidade. Como a proteína tau é encontrada também no liquor, pode ser facilmente coletada e converter-se, no futuro, em um marcador biológico da doença de Alzheimer.
Um estudo clínico do qual participaram 77 voluntários com distúrbios leves de memória mostrou que a maior concentração da proteína tau no liquor se correlacionou à severidade dos prejuízos cognitivos.
As autoras
GAËL CHÉTELAT é pesquisadora do grupo de neuropsicologia cognitiva e neuroanatomia funcional do Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica, em Caen (França). CATHERINE LALEVÉE é neuropsicóloga da clínica da Universidade de Caen.
- Tradução de Renata Dias Mundt
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